Em 'Branca dos Mortos e os Sete Zumbis', Fábio Yabu resgata a tradição clássica dos contos de fadas dos irmãos Grimm e de Hans Christian Andersen, onde as histórias, mais que um simples entretenimento, servem como lições para moldar o caráter das crianças, na maior parte das vezes por meio do medo. Aqui, não há meias-palavras nem eufemismos. O mundo encantado de Yabu é atormentado, sombrio e com altas doses de tensão sexual. Os contos seguem o mote de sucessos da televisão atual, como as séries Grimm e Once Upon a Time. Protagonizadas por personagens dos contos de fadas, revelam facetas nunca antes imaginadas de suas personalidades. Além disso, os onze contos que compõem Branca dos Mortos e os sete zumbis formam uma narrativa não-linear que culmina num desfecho aterrorizante. A obra ainda conta com as ilustrações de Michel Borges, que acompanha o autor desde seus primeiros projetos. As ilustrações de Michel homenageiam os desenhos clássicos dos contos de fadas, com toques sombrios, e complementam a atmosfera sinistra e misteriosa criada por Yabu.
1. Branca dos Mortos e os Sete Zumbis, retrata a história de Branca de Neves, mas com uma pitada de terror. A escrita é humorística, o que tira um pouco a sensação de medo. É narrada em 3ª pessoa do singular e conta como Branca deixa de ser a indefesa menina que conhecemos no conto de fada infantil e passa a ser uma jovem que sabe se defender dos perigos e que não é nada piedosa com seus inimigos. Após ser esquecida pelo pai, que a culpa pela morte de sua querida e amada esposa, ela foge para a Floresta maldita pois a odiosa madrasta, a mesma bruxa que deu uma maçã envenenada para a mãe da Branca, a quer matar.
Pela primeira vez desde que nasceu, a sorte da princesa de pele branca como as órbitas de um defunto, os lábios vermelhos como sangue e os cabelos pretos como as penas de um corvo, parece finalmente mudar. Mas é só aparência mesmo. Branca encontra na Floresta uma pequena casa que parece abandonada e estranhamente tem sete pequenas camas. E nesse ponto pensamos que o conto vai seguir com a mesma história com a qual já estamos acostumados, mas é aí que tudo muda e entendemos o por quê do título.
A madrasta de Branca a encontra e lhe oferece uma maçã envenenada, a fim de matar a enteada, mas a jovem esperta e perspicaz entende a situação e dá uma boa surra na velha bruxa. Depois chegam os anões zumbis, também conhecidos como mineradores, pois trabalham numa mina e tratam de comer as pessoas que passam pela Floresta, e tentam a todo custo comer a menina, mas ela dá cabo a todos, mas, como são zumbis, eles se recompõem e voltam à tarefa de matar Branca. A madrasta, que já foi mordia pelos zumbis e agora é um deles, acaba mordendo a enteada, que a sua vez começa o processo de putrefação do corpo, mas antes que seu corpo se transforme numa massa nojenta e podre como os dos outros, ela come a maçã envenenada para parar o processo. Mas a história ainda não termina aqui e deixo que vocês descubram por conta própria.
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Ilustração do livro. Imagem da internet. |
2. João e Maria e Outros: são abandonados na Floresta pelo pai a conselho da odiosa madrasta. E como no conto que conhecemos, o inteligente João tem a ideia de marcar o caminho de volta a casa com pedrinhas brancas (desta vez ele foi inteligente mesmo, marcou com pedras, haha). Mas como já se sabe, a Floresta guarda muitos medos e monstros, são raras as pessoas que vão lá e conseguem voltar com vida, ainda mais com os sete mineradores vivendo nela. O que posso dizer é que a madrasta e o pai vão ter o que merecem, enquanto que as crianças...Bem, leiam e descubram.
3. Os Três Lobinhos: Já sei o que devem estar pensando, mas já era hora de renovarem o contrato e convidarem outros personagens para protagonizar o conto, não acham? Desta vez os papéis se invertem e os maus da história são os porcos e os homens, que em muito se assemelham.
Esta é a história de três lobos corajosos que se rebelaram contra os deuses e um deles muda o destino cruel e injusto imposto à raça. Acho que essa é a história menos macabra do livro.
4. A Vendedora de Fósforos e o Vingador: é uma história triste de pais cruéis que diante da fome abandonam seus pobres filhos na Floresta maldita. No caso desta é um pouco diferente, pois o pai não a abandona, mas obriga a filha a ir vender fósforos em meio a um frio insuportável. Quando a pobre menina, a vendedora de fósforos, morre congelada, há alguém que arma um plano para se vingar daquele homem cruel e dar uma lição nos seus vizinhos, assim ninguém se atreveria mais a abandonar os filhos. Todos pensam que o vingador é um fantasma, mas na verdade ele é só pequeno, tão pequeno quanto um Polegar.
5. Cindehella e o Sapatinho Infernal: Gente, que carnificina é essa? É uma mudança drástica do conto infantil que conhecemos, falo daqueles da Disney, claro. Depois da parte que Cindehella vai pro baile, tudo se transforma num pandemônio. O que era uma menina doce, meiga, se torna em uma jovem calculista e fria. Sua fada madrinha (maldita) é uma bruxa que depois cobra muito caro pelo feitiço que permite a jovem ir deslumbrante ao baile. Vocês terão uma supresa no final. Leiaaaam!
6. A Confissão: Uau! Trata-se de Pinóquio e seu criador, seu pai Gepeto. Este é um conto muito triste e deprimente. Pinóquio se transforma num rapaz malvado capaz de cometer todo tipo de atrocidade pra chamar a atenção do pai. Como todos os contos, tirando a parte da carnificina, claro, pois maldade nunca vai justificar nada, servem para reflexão de muitas questões que implícita e, às vezes, explicitamente, são colocadas em pauta.
7. A Bela Incorrupta: esta história se baseada em aspectos da do Frankenstein. Um jovem estudante de medicina, Robert Phillips West, tem uma obsessão por descubrir o segredo da morte e/ou da vida. Tomado pelo desejo de penetrar neste âmbito incerto, o jovem desenvolve várias pesquisas e gasta toda a fortuna deixada pelo pai em intentos de reanimar cadáveres há pouco tempo mortos, e ele conseguiu alguns resultados, mas não foram suficientes para fazer um defunto reviver. Cada vez mais envolvido no projeto, Robert é tido como louco por muitos cientistas e, principalmente, pela Igreja, que vê seu projeto como uma loucura, pois não seria possível reviver um corpo, pois além dos órgão vitais, ele está composto de uma alma, e esse elemento não pertence ao plano terrenal. Mas, com todos os obstáculos, Robert continua na sua pesquisa até que encontra o corpo de uma jovem chamada Bela Incorrupta -justamente por seu corpo não se decompor mesmo ela tendo supostamente morrido há mais de cem anos- e o rouba de uma esquife onde era conservado para fazer experimentos. O corpo deixa o médico intrigado, pois conserva uma aparência jovial e vital, é como se a moça estivesse apenas dormindo. E mal sabe ele que a causa da morte da jovem foi uma maçã envenenada. Leiam e descubram como termina este conto. ;)
8- O Monstro: este é o único conto contado em versos. A estrutura dele é totalmente diferente dos anteriores e se trata de um poema que tem dois narradores. O primeiro é o que conta, como se fosse o escritor da história narrada, mas em alguns momentos ele cede sua voz para o monstro com quem teve um encontro enquanto lia um livro profano. O terror do conto está nas descrições que o narrador faz do personagem, que é confundido como uma criatura infernal por ser tão feio. O narrador deixa claro que se baseou no poema O Corvo, de Edgar Allan Poe
"E dos versos do Corvo de Allan Poe
Fiz manuais para estes que testemunhais[...]"
Ademais das características formais, Abu Fobya vai tratar da mesma espécie animal que Poe tratou no conto, e você, com certeza, se surpreenderá ao descobrir o que tanto o narrador teme, qual o monstro que tanto o assustou.
9- O Cemitério: confesso que não sei muito o que falar desta história. Apenas direi que trata-se de uma personagem que já percorreu outros contos, a Chapeuzinho Vermelho. Este é um conto macabro, nojento, eu diria. Não o achei tão rico como os outros, é um pouco mais fraco em aspectos de construção.
10- Samarapunzel: esse é um daqueles textos que quando você termina de ler, diz "nossa, o que foi isso?". Acho que este é o conto mais surpreendente e assombroso do livro. Se o da Cindehella foi uma carnificina, esse é uma carnificina ao quadrado. Como o título indica, a personagem principal é a Rapunzel, só que no conto tem toda uma explicação pelo seu nome ser assim, Samarapunzel. No início, a história sigue o mesmo rumo da que conhecemos, claro que com características diferentes, mas o rumo é parecido. Só que na parte da relação da jovem com o príncipe, que a descobre por sua bela voz e sobe até a torre onde ela é "guardada" pela madrasta, é totalmente diferente da pintada pela Disney; não tem nada de inocente aqui. E a má da história não é a madrasta, que na verdade foi uma mãe. Samarapunzel é um fruto de uma maldição, ou melhor dizendo, quando grávida, sua mãe desejou os rapunzéis da vizinha e seu marido para satisfazer o desejo da esposa roubou enquanto a dona estava distraída e deu pra mulher comer, mas mal sabiam eles que a plantação era tão vigiada por uma mulher vestida de branco por proteção de quem se aproximasse, pois escondia uma maldição antiga e muito perigosa.
Quero destacar um detalhe muito interessante deste conto, ele é narrado como se seu contador fosse os irmãos Grimm (Wilhelm e Jacob Grimm), sendo o narrador o Wilhelm. Em uma certa noite, seu irmão Jacob aparece em sua porta extremamente assustado por uma história que ouviu, a de Samarapunzel. A pessoa que lhe contou lhe deu 7 dias pra repassar, se isso não fosse cumprido, ele morreria. Pois bem, ele vai e conta a Wilhelm, que por sua vez a escreve para também não morrer. Esta foi uma das histórias mais perturbadoras do livro e a que realmente me deu medo. Mas além de medo, eu senti fascínio pela maneira como foi construída. Ela não só causa medo, como também revela algo.
Mas se acaso as palavras de Jacob forem verdadeiras, e eu não ouso dizer que não, e por uma terrível infelicidade chegaste até estas linhas, já sabes o que tens que fazer se quiseres viver.
W. Grimm
Berlin, dezembro de 1859.
Esse algo é a perpetuação dos contos, pelo fato de ter essa tradição de ser passado de geração a geração, ele acaba se perpetuando no tempo e o livro de Abu está repleto de referências que remetem à tradição dos contos, que era oral, portanto só podia sobreviver ao tempo se fosse repassado. Então, esse trecho que transcrevi, mais do que causar medo e mexer com o psicológico do leitor, ele revela a magia das lendas tão contadas e conhecidas e é um pedido para não morrer, para que o leitor não a ignore.
11- O Fim de Quase Todas as Coisas: e estamos quase no fim desta resenha, haha. Esta é a história das histórias. Estamos diante do nada. Isso mesmo, diante de um planeta que já não tem mais um único habitante e não há quem se lembre deles, apenas Charon (que na mitologia grega é conhecido como um barqueiro de Hades que carrega as almas dos mortos).Todos desapareceram da face da Terra. Enquanto Charon observa esse vazio, se aproxima dele uma ninfa curiosa. Ao avistar uma casa, a única coisa que existe nesse planeta desolado, ela pergunta que homem construiu aquela beleza, e olha a resposta do barqueiro:
“Homem?”, riu Charon. “Não foi um homem quem construiu esta casa. Foi um porco.”
E o que podemos interpretar deste último conto e desta frase? Na minha opinião, o que ele quis dizer é que ainda que se passem gerações inteiras, porque pessoas e coisas se acabam com o tempo, as histórias dessas pessoas permanecem. Mais uma vez o autor exalta o valor do conto e, consequentemente, da literatura. A casa feita pelo porco remete à lenda que conhecemos. Ainda que seus donos morreram, ela continuou lá. Na verdade, pra mim, é uma metaforização do ato de contar e de escrever, que revela que mesmo que se acabe o homem e até o planeta como o conhecemos, em algum lugar ou em algo sua história vai ficar registrada. Porque os contos, ainda que mudem e evoluam com o tempo e por ter o caráter de ser passado de geração em geração, eles não morrem e são eles o que vai revelar a existência dos humanos, porque também somos feitos de sonhos.
Ah, outra coisa interessante é que a Floresta aparece como um fundo, como cenário da maioria das histórias contadas, ela adquire, portanto, um caráter de personagem, porque exerce certa influência no desenrolar dos contos.
Classificação:
Autor: Fábio Yabu
Ano: 2013
Páginas: 208